Alertando para um certo “presentismo” característico do consumo cultural (e também das pesquisas) na era da comunicação instantânea, em que nos sentimos inclinados a receber qualquer informação como novidade absoluta, Donnat propõe-se a recuperar um percurso de quase meio século, a partir da realização das primeiras pesquisas sobre práticas culturais na França, ainda nos anos 1960, idealizadas como ferramentas para compreender os hábitos culturais dos cidadãos, objeto das políticas do então recém criado Ministério de Assuntos Culturais.
O Estado Francês do bem estar no pós-guerra, centralizado, preocupava-se com as diversas questões sociais, buscando descentralizar a gestão dos recursos e incluindo a cultura com o objetivo de democratizá-la, tornando acessíveis ao maior número de franceses as obras capitais da França e da humanidade. Em vista disso, era necessário saber quem eram as pessoas as quais se dirigia essa política.
A primeira pesquisa, foi a de Pierre Bourdieu, realizada em 1963, com o objetivo de responder à pergunta "qual política precisamos implantar?" (Ver o livro O amor à arte: os museus de arte na Europa e seu público, escrito com Alain Darbel) Partia-se de uma perspectiva positivista, visando obter uma fotografia factual das ações e práticas dos franceses. Não se perguntava o que eles pensavam, mas o que haviam feito nos últimos 12 meses. Constatava-se uma defasagem entre o que o entrevistado declarava e o que realmente havia feito.
Os focos principais de interesse dos pesquisadores, naquele início, dividiam-se entre a sociologia da cultura clássica (“alta” cultura), seus bens culturais e lugares por excelência (teatros, museus, bibliotecas); mas também as práticas de lazer, assunto que passava a interessar à medida que se constatava um aumento do tempo livre dos trabalhadores dos países industrializados; e a sociologia dos meios de comunicação, cujo poder de alcançar multidões não cessava de crescer, sucedendo a TV ao rádio como protagonista naquele momento.
As primeiras interpretações davam conta de uma cultura repartida de modo desigual, justificando a necessidade de recursos para sua democratização. Formou-se desde então uma aliança entre os pesquisadores que produziam esses dados e os militantes da democratização, sobretudo no campo da educação popular, alavancando a demanda por esses recursos.
Tal quadro altera-se a partir dos anos 1980, quando o orçamento da cultura é duplicado pelo governo socialista. Acentuam-se desde então as complexidades, de que os estudos nunca terminam de dar conta: o advento dos computadores; a legitimação de novas expressões artísticas (rock, jazz, HQ, moda) e mesmo da indústria cultural (introduzindo a necessidade de pensar o viés econômico); e ainda a fragmentação do “público” em “públicos” (os jovens, os idosos, os deficientes, as mulheres, etc.) demandando diferentes propósitos para a política cultural, onde antes parecia suficiente o de “democratizar”.
Neste momento, causa forte impacto o lançamento da obra do pensador liberal Alain Finkielkraut, A derrota do pensamento (traduzido no Brasil pela Paz e Terra, 1988) que criticava, no contexto global do neoliberalismo, a democratização, ou horizontalização do conceito de cultura como uma capitulação à barbárie, pelo apagamento ou negação das referências da “alta” cultura. Neste momento, parece desfazer-se a aliança existente, quando parte dos militantes da democratização encontram nas pesquisas as provas do fracasso das políticas culturais, que após vinte anos não haviam alterado significativamente as condições de acesso da maioria da população.
Passados outros 20 anos, de certa forma temos uma situação que justifica as pesquisas, uma vez que o rápido avanço das tecnologias de informação e comunicação transforma velozmente nossos hábitos, de modos que ainda não chegamos a compreender. No novo contexto, destacam-se três características: o Estado é mais modesto em suas pretensões, repensando continuamente o seu papel no novo capitalismo global; surge e ganha força a idéia de diversidade cultural, que atribui a mesma dignidade às diversas formas de expressão, em oposição à democratização, cujo sentido fundava-se na dicotomia alta-baixa cultura; e o foco do pensamento sociológico migra das classes para os indivíduos, tidos como mais livre ou independentes em suas ações e decisões.
É neste contexto que foi realizada a última pesquisa francesa (2008), que parece nos situar no limiar entre dois tempos, entre dois séculos: o pré-digital e o digital. Aumentam as dificuldades de delimitar certas categorias, como ver televisão (No aparelho de TV? Na internet? No celular?). Identificam-se algumas tendências: a popularização da "cultura de tela": quase todos os conteúdos são acessados por meio de alguma tela, mesmo nos “lugares da cultura” tradicionais; um recuo da leitura de livros e impressos, especialmente entre jovens do sexo masculino; um aumento da frequentação que não implica uma real democratização, porque decorre mais do aumento da oferta de cultura e de formação educativa.
Apesar de tudo, algumas constatações dos anos 1960 permanecem curiosamente atuais, entre elas a de que o diploma escolar mantém-se como o fator que explica com mais consistência o nível geral de participação cultural; permanece grande a defasagem entre o consumo dos parisienses e dos demais franceses.
Há porém avanços, com a evolução dinâmica ligada às mudanças generacionais, entre elas um aumento considerável no consumo de música e da produção de espetáculos, um aumento das práticas artísticas amadoras e a perda de importância da televisão.
Para finalizar, Donnat sugere três objetivos fundamentais para as pesquisas de público:
- MEDIR: “A recusa de contar raramente está a serviço dos pobres.” Não deixar os números sob o domínio exclusivo dos economistas.
- AVALIAR: A existência de oferta de produtos culturais não “revela” magicamente a demanda, é preciso mapear esta, formar o público.
- COMPREENDER: O consumo não implica automaticamente a compreensão. É preciso estudar como acontece a interação entre a obra e seu público.
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